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sábado, 29 de outubro de 2011

Salva pelo Jorge...


Adormecera.

Da melancolia e do aperto no peito repentino, restava apenas a vontade de me desembaraçar de algo que não era meu, não era de ninguém, apenas dela...Tornava-se impossível de continuar de um minuto para outro...Voltava a dor, a tristeza e a vontade de chorar...Tentava aguentar-se, achar graça ao programa da televisão feito para rir, dar atenção a mais uma ou outra história repetida que ouvira várias vezes de então para cá, desempenhar mais uma ou outra tarefa que fazia parte do protocolo da profissão de fim de semana, rir sem vontade porque a tarefa não tinha qualquer motivo para rir, sofrer calada em solidariedade, dar de comer, limpar a boca, dar os remédios a horas sem se enganar, levar sem que quisessem que assistisse a momentos que requerem intimidade, e ela também não queria..

As horas passavam felizmente, os ponteiros continuavam a rodar sem parar, ainda bem...

Até ao final do dia, conseguira levar tudo sem sentir, ao contrário da última vez. Antes, por esta hora... já chorava sem parar, fumava cigarros atrás uns dos outros e bebia café, sentia uma pequena dor do lado direito junto à anca ao mesmo tempo que ouvia um conjunto de música de festa de aldeia, de uma qualquer aldeia distante, mas não o suficiente...tanto assim, que seguia a letra das músicas, umas mais alegres que outras,... e nessas..., nas outras, chorava ainda mais, pela tristeza do que seria obrigada a viver.

A vida magoava-a a cada momento, mas pior que isso, magoava pessoas de quem gostava como a ninguém e isso fazia-a sofrer mais ainda. Sofriam as duas.

Dormia cedo agora, mais do que antes. O reboliço de uma casa cheia, risos, música, correrias, euforias,...palavras deitadas à rua sem pensar, levianas, era agora insuportável. A visão era turva,... e para grandes males, grandes remédios e os remédios eram agora tantos, doces e amargos, inteiros e em metades. O peso de oitenta e quatro primaveras e verões, e de oitenta e três outonos,... se conseguisse chegar ao próximo inverno era uma vitória estonteante. Carregava consigo, para além da camada de creme diário para amaciar a pele a fralda nocturna... Sentia-se repleta de lembranças, umas recentes e outras demasiado antigas de quando criança, que ainda a mantinham de pé, à espera daquele dia em que iria ajustar todas as contas com ele, caso ele tivesse vontade, porque ela já não sentia forças para discutir ou apenas argumentar...provavelmente, optaria por se deixar ir e pronto... Falava da primeira ida ao Teatro São Luís ver um filme de um cantor da época, o primeiro filme a cores,... entusiasmada, depois de um prato de sopa numa casa pobre como a sua, sem floreados,... a pé descia da Graça ao Rossio e subia ao Chiado, - Era tão bonito aquele teatro, vamos ficar na geral...

Inúmeros anos passados sobre todo este enredo, ...acabei salva pelo bailarino, pelo Jorge que via o filme da sua vida, sentado no palco do mesmo teatro, filmado pelo Marco...Ela, já adormecera, depois de mais um jogo do benfica, o seu último amor.

O Jorge pequenino veio salvar-me da melancolia do momento e levou-me para o quarto, onde fiquei em cima da cama expectante enquanto ele contava a sua história dentro daquela caixa que transborda de tudo desde que se carregue num botão... o outro, o Jorge bailarino, estaria algures no presente, em sua casa sentado na poltrona que o aconchega à vida...Ela, adormecera na cama, adornada pelas lembranças...Eu, permanecia de vigia...

...Obrigada Jorge pelo resgate, ...and please, keep going...


A ilha...





Estes são definitivamente os meus dias. Os dias de que mais gosto do calendário inteiro. Dias de chuva, de chuva de verdade e de vento, em que a natureza se afirma, se firma aos olhos dos homens mais cépticos. Não lhes restam dúvidas, nem a mim por outras certezas.

É nestes dias que me encontro comigo de forma mais íntima, talvez por ser feita de água, de haver em mim mais espaço preenchido pela água que por terra. É nestes dias que me dispo à minha frente, que me encaro, que me falo, que me oiço e traduzo em palavras o que a pele me deixa sentir. Não sem antes buscar uma folha em branco, olhar para ela, limitada pelos quatro cantos, com respeito, sem pudor, para de seguida a encher de vocábulos com ou sem nexo, não me preocupo, ela entende-me, está habituada.

Também ela aparece nua..., sem vergonha, sem embaraço e pronta a ser preenchida de forma arbitrária com as palavras que saltam inusitadas e sem ordem, cheias ainda de vida, porque acabaram de nascer. As mais novas encostam-se umas às outras à procura de aconchego, sentem-se ainda perdidas no meio de tanto branco, sentem frio, arrepiam-se. As últimas já nada temem, têm companhia. É o calor que cresce conforme se vão enroscando, encaixando, fazendo sentido. 

A minha folha, traja agora um vestido que se  molda em cada linha imaginária, dos pés à cabeça. Eu, permaneço cada vez mais nua, a escrever ao som da chuva que malha na minha janela sem perdão. Viro a página.

Vazia, olho o espelho,... não consigo ler-me mais..

Não me insisto, não me obrigo, não me devasso...

Ela, poisada sobre a secretária de madeira deixa-se ficar..., deitada em comunhão, com a caneta...

...Lá fora tudo é água. Cá dentro tudo é água também. Avisto ao fundo, dentro de mim... uma ilha...onde me vejo e revejo, pequenina.

Sou uma criança  rodeada de mar...

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Underground - O silêncio dos inocentes...


Debaixo do chão, para além dos ratos, viviam indignados e de cabeça para baixo homens e mulheres de respeito, capazes de feitos sem tamanho para o bem e para o mal...pena era, que as vitórias de outros tempos estavam tão longe do pensamento e da razão que já não se arrumavam nas memórias, nem nas cabeças de ninguém. Pertenciam a um passado longínquo, cheios de pó, em prateleiras esquecidas no tempo. 

Encurralados em lugares onde a luz não existia ou era fraca, onde quase não se conseguia sequer respirar, perdiam a cor, o brilho, a vivacidade, a força, a expressão, a vontade de se expressar, a voz, a garganta..., tudo isto, porque foram deixando de lhe dar o uso próprio, ou qualquer outro. E, eu, assistia agora à sua morte aos poucos, um pouco por todo o lado.

Perderam a esperança, entregavam-se à agonia dos dias infindos, em que as palavras desapareceram, umas atrás das outras, reinando um silêncio ensurdecedor de dor, sem futuro e sem volta. A palavra sonho fugira de todos os dicionários sem deixar rasto, dando lugar à tristeza, à desilusão e ao desencanto.

Antes de perderem as formas físicas de se fazerem ouvir, os homens e mulheres com honra, terão perdido a  memória e a razão. Ninguém tem nada para dizer ou para fazer, se a memória se apagar. Talvez, por isso, vivam hoje, de fardo às costas, carregando todas as culpas, as suas e as demais, até as dos homens que vivem a cima do nível do mar.


Dois dos indignados, ainda pouco convencidos de que a vida findava na distância que vai dos nossos olhos ao chão, aventuraram-se e levantando a cabeça, perceberam que havia algo mais..., desconhecido..., que  havia um outro mundo para além deste, onde a vida ganhava um outro significado, onde o Sol reinava, a água corria, o vento soprava, o fogo iluminava corpos e almas e onde as pessoas sorriam  ainda com vontade de o fazer...

Ali, onde viviam encerrados na escuridão e sufocados pelos modelos, pelas tentativas, pelas desilusões constantes, só existiam duas cores, o cinzento desiludido e o preto carrasco.  Mas, o espírito aventureiro, bravo e curioso corria-lhe nas veias, nas suas e nas dos seus antepassados e aquecia-os de tal forma, que lhes empurrava o pescoço e a cabeça na direcção do céu.

Naquele dia, repararam numa nesga de luz, que atravessava  de forma nuclear aquele gueto casario  sem vida, ou sem esperança, como uma vara atravessa um rio ou um mar até adentro e faz navegar um barqueiro de outra terra, não para o agarrar ao fundo, mas para o fazer deslizar...Morria a morte e espreitava a vida. Aquela que um dia os deixara à deriva, com os homens de outro nível no comando. Aquela, que quase os abandonara....aos inocentes, underground.

Enquanto isto, eu, desfaço-me em folhas de papel e de rascunho que levo para onde vou...

domingo, 9 de outubro de 2011

João e as draconídeas...


Ontem à noite, as draconídeas rasgavam o céu em pedaços, deixando marcas cor de prata na imensidão negra do espaço. Apareciam em todas as direcções de forma envergonhada e faziam traços aqui e ali desenhando a via láctea, enfeitada anteriormente pelas estrelas. O espectáculo para quem quis ver, era mágico. 

Correndo de um lado para o outro no seu casulo, João mergulhava no fantástico de cada vez que saia a porta ou espreitava da varanda.
- Acabei de ver uma, é tão bonito. 
E, permanecia, impaciente a olhar o céu, a quem nunca tinha dado muita atenção.

A Lua, quase cheia, defendia as aparições soltas e espaçadas no tempo, com a sua luz branca e fixa que enchia o céu de luar e o João de preses para que se apagasse só por um bocadinho, para poder assistir em paz e na repleta escuridão aquele espectáculo pela primeira vez e  de forma intensa, viajando, no espaço. Mas a Lua não o ouvia. Estava demasiado concentrada, lá em cima no seu pedestral, a tomar conta do céu.

Acabou por desistir e abrir o mais possível  os seus grandes olhos, redondos, de azeitona, negros. Tapara os ouvidos para não ouvir a luz da lua teimosa  que lhe roubava a concentração e deitou-se no chão a olhar o esplendor da natureza, aquele tecto carregado de pontos minúsculos de luz, mais ou menos intensos conforme a distância a que se encontravam da Terra e questionava-se, curioso.

- Porque nunca dei atenção ao céu?, - Quem são estas migalhas luminosas?
- O meu avô!, A minha avó?!, A minha mãe?!!!

João, não percebera que enquanto formulava para dentro de si todas aquelas perguntas, que a Estrela Polar  que estava mais perto de si que todas as outras e mais atenta,  descera até à sua varanda, silenciosa e lhe oferecera o seu colo,  onde João aconchegava a cabeça. Afagava os cabelos de João com uma das mãos e com a outra permanecia agarrada ao céu, a onde pertencia. Por aqui não havia solavancos de condução como nos autocarros, para que pudesse cair, mas havia uma profecia milenar, que dizia, que no dia, em que soltasse as duas mãos lá de cima, cairia redonda na terra e perderia a vida para sempre. Gostava demasiado de viver para morrer, por isso tinha cuidado quando chegava perto de nós,  as pessoas, os humanos. Permaneceu de braço no ar o tempo todo, numa posição deliciosamente desconfortável. Eu vi, estava lá também.

João, por seu lado, aconchegava-se cada vez mais ao conforto de um colo maternal, que quase já tinha esquecido e que lhe sabia tão bem recordar. Ficaram por ali, encetando um silêncio que nunca mais terminou ao longo da vida dos dois...