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segunda-feira, 30 de maio de 2011

O céu pode esperar...


...não sei porque tudo começou... já tinha a cabeça na almofada, depois de uma manhã que se estendia tarde a dentro na discussão de tarefas misturadas com muita retórica e formalidades...quando os meus olhos começaram a pesar mais que o meu corpo e voei no insólito...Eramos três dentro do carro, ...eu, tu ao volante e alguém no banco de trás. Sentia uma alegria estonteante sem procurar saber a razão... talvez porque decorrido todo um tempo em que estivemos separados e que a distância não nos deixava aproximar, pela incompreensão do que cada um de nós queria da vida, realizava um desejo escondido, secreto de acalmar uma inquietude por mim vivida acordada. É difícil explicar a alegria sentida... perguntava-me, porque me encontrava ali, com aquelas duas pessoas de rostos semelhantes... o que faziam aquelas pessoas ao pé de mim...olhava para um e para outro, sem entender, mas feliz.

Repentinamente, debruçado e inclinado sobre mim, estavas tu...envolvias-me o pescoço e o regaço com os teus dois braços de forma leve, amistosa, senti-me um pouco embaraçada, sabia que não estávamos sós, de seguida estendias-me um beijo envergonhado, na penumbra do alcance do passageiro do banco de trás, ...ao mesmo tempo que eu recebia aquele acalorado carinho sem me questionar, sabendo-me bem a envolvência que me propunhas, sem qualquer outra intenção de ir mais além... chamei atenção, afinal ias a conduzir  por um caminho sinuoso e avançando em frente a significativa velocidade...desvalorizaste o facto e tranquilizaste-me...deixei-te continuar agarrado a mim.

Recordo-me que a determinada altura e quando vi que estavas a perder o controle da situação e o controlo de ti, permanecendo eu, sem me mexer do meu lugar e saboreando apenas os carinhos que me oferecias,... que, em simultâneo me ocorria abrir a porta do carro e atirar-me berma fora, por pressentir que algo mau estava para acontecer...receei e preferi acreditar que não...lembro-me de te interpelar, para que tomasses consciência do que estavas a fazer, voltaste a contrariar o meu receio, ....trocamos algumas palavras que acompanhavam a velocidade a que seguíamos estrada fora,... inúmeras curvas...

Desabafaste algumas palavras, dizendo que não sabias explicar aquele momento e a confusão que estavas a sentir, eu... tentava orientar-te, colocar-te no caminho da razão, da racionalidade, na estrada estreita por onde seguias e nos fazias seguir,... De trás não vinham novas, palavras nenhumas...e, arrisquei dizendo, ao mesmo tempo que os meus olhos alcançavam uma solução para evitar o pior, apesar de o lugar ser escuro, numa clareira à entrada de um pinhal... a seguir a uma curva inclinada à direita, disse: Pára ali à frente, por favor...(é o sítio ideal, há espaço para acalmar e entender o que acabou de se passar dentro de ti, dentro de nós todos, clarificar eventuais equívocos, dúvidas, ....respirar fundo, oxigenar o cérebro...) Conforme proferi aquelas palavras senti o guinar do volante para a direita ao mesmo tempo que o carro tentava subir aquela curva onde vivia a minha esperança...ele acelerou desesperadamente, até onde o motor o permitiu para conseguir concretizar a manobra e o carro voou em direcção ao céu, levantou verticalmente e o meu coração disparou, tinha os olhos abertos, uma sensação de aperto onde a voz perdera a expressão e só se ouvia dentro de mim... Acabou, a seguir morreremos, pensei... quando, o carro for contrariado pela força da gravidade e retornar no sentido inverso contra a terra, contra o chão... previa o som do impacto da matéria, daquele corpo e daqueles corpos contra o chão...não queria assistir, sentir, desejava morrer antes que aquele instante acontecesse...fechei os olhos, não senti...tudo não passava de um pesadelo...

domingo, 29 de maio de 2011

The Beagle Boys...Contemporâneos.



Vou contar-vos como adquiri o meu piano...

...a meu pedido, Patacôncio,  procurava um piano. Gostava de música e isso bastava-lhe...Fixara-se em dois filmes a que tinha assistido no cinema em mil novecentos e qualquer coisa, em que ambos tinham um protagonista, um piano de cauda, Stheiwell,....

Patacôncio, gostava de se imaginar naquela praia ao largo da costa da Austrália a tocar piano, com o vestido arrojar pelo chão de sapatos molhados ou no meio da II Guerra Mundial ao lado do Reich, naquela sala perdida e destroçada pela guerra, a tocar Chopin...Patacôncio, era um ladrão erudito...

Um dia contactou com os Beagle Boys, que andavam sem nada para fazer...Falou com o 176-671, este atendeu de imediato ao seu pedido. Havia uma relação próxima entre estes, o 176-671 e o 176-761, trocavam frequentemente, histórias de experiências sobre delitos e discutiam com precisão todos os detalhes,  locais, objectos a roubar, cofres espalhados por aí, segredos de cofres,...  Conheciam todas as prisões do país, mas também todos os caminhos para fugir de todas elas,...

Uma vez, na tentativa de fuga de uma prisão, escavaram um túnel que os levaria para fora dali, mas por engano foram parar ao País das Maravilhas. A estadia foi curta por lá...eram muito trapalhões,..tropeçaram na Alice, partiram o relógio de bolso ao Coelho Branco, pisaram o rabo do Gato Cheshire, roubaram o chapéu ao Chapeleiro Louco e claro está, acabaram a fugir da Rainha de Copas entidade suprema naquele país...em pouco tempo viraram o país do avesso. Voltaram de novo para o mesmo túnel, que os levou de volta à prisão. 

O 176-671, falou com o 176-761 e com a ajuda do 176-176 ultimavam pormenores para o roubo do instrumento.

Depois, de inúmeras vezes tentarem roubar sem sucesso a Caixa-Forte do Tio Patinhas eram obrigados a fazer furtos de pequena monta, para fazer jus à profissão. Ao mesmo tempo que davam muito trabalho ao Mickey e ao Coronel Cintra para defender o património do seu tio. Patacôncio, arqui-rival de Tio Patinhas, não lhe perdoava o roubo da namorada na sua época.

O Vôvô Metralha desmemoriado permanentemente e a Titia Metralha que faziam parte da família, muitas vezes queriam ajudar e juntavam-se à quadrilha apenas para criar resultados ainda mais desastrosos. Este trio de metralhas, muitas vezes eram  ajudados ainda por mais um ou dois não ultrapassando os cinco, desde que houvesse pijamas às riscas. Havia ainda um Primo Azarado (1313) e o Meio Quilo (1/2), para além dos sobrinhos Metralhinhas que adoravam pregar partidas aos rivais sobrinhos do Pato Donald. Outros bandidos havia em Patópolis, Mancha Negra, Bafo de Onça que competiam com os metralhas, sempre contribuindo igualmente para o final desastroso.

Os anos passaram, eles foram envelhecendo dentro dos seus fatos às ricas, pretos e amarelos...hoje, já pouco ou nada roubam, muito menos um piano. Não têm força para o carregar. Quando eram novos e empenhados, trouxeram-me um  cá a casa, o que guardo aqui na sala , preto, com as teclas em marfim. O piano é o instrumento que mais gosto,...mas também confesso que não deixo de sentir uma empatia  pelos irmãos- metralha, talvez por ter lido tanta banda desenhada.
Que saudades...



domingo, 22 de maio de 2011

A solidão dos bombons...


Joana, completava uns cheios 83 anos,  por altura da troca de prendas, vindas de quem se gosta e outras, a quem se dá por educação; por altura da criação de quadros e fotografias fingidas de  famílias unidas;  por altura de fantasias, das histórias que nos contam em criança, e infundadas vocações, que só surgem nesta época nos espíritos mais sonhadores, sempre e sempre em redor de uma árvore enfeitada e colorida, que sem ter culpa de nada, nem de pena para cumprir, acaba decepada e a fingir  como a maior parte de todos, os que brincam de solidariedade, compaixão, fraternidade, amor pelo seu semelhante. 

Era uma mulher simples, lutadora, que a vida obrigou muitas vezes a crescer depressa e a ser forte. Quem a olhava, via apenas uma mulher franzina. Quem a conhecia, sabia que era muito maior do que o que víamos de facto.

Preenchia os seus dias com pequenas coisas. A sua vida dependia do Verão ou do Inverno para sair de casa.

Adorava, ver os momentos do Peter Pan entre as crianças e a Catarina, com quem esbanjava gargalhadas na sala, que eu ouvia no quarto. Sabia muitas coisas das vidas dos ilustres que decoram as revistas cor-de-rosa, que leu até à pouco tempo, antes de o Glau, lhe ter  quase comido a vista esquerda. 

A sua vida, tinha tantas histórias, que as contava como se tivessem acontecido ontem, recordando com precisão todos os  pormenores.  Hoje, já só lhe apetecia dedicar-se a coisas fúteis e sem culpa. A pequenos prazeres que não exijam muito esforço. As suas pernas cansadas de viagens intermináveis, teimavam em andar devagarinho, ao contrário da cabeça que corria a mil à hora, entre o passado e o presente de forma muito límpida, ainda.

Adorava vibrar, com gritos e gestos, aos gloriosos golos de um clube que amou a vida toda. Vermelha, de raiva, às vezes, por uma táctica que não entendia, discutia sozinha com o écran da televisão, com os jogadores, com o árbitro, com o treinador, mas... ficava sempre alegre no final de cada jogo, ganhasse ou não o seu clube do coração. Havia dentro dela uma águia.

Tem um pássaro chamado Mantorras na gaiola, com quem gosta de falar, mas está preso. É a sua companhia diária. Ele, o Malato que está preso dentro do televisor, a Amália que está presa dentro do rádio, e uma ou outra amiga que foram condenadas há uns anos a viver dentro do telefone tal como a maioria dos seus familiares mais distantes ou mais próximos. De vez em quando, vê alguém, que passa lá por casa uns minutos, para que não se esqueça da silhueta dos seres humanos, mas mal dá para começar a falar do tempo, quanto mais contar histórias.

Joana, teve 5 filhos, tem 6 netos e um destes dias, em que partilhou com alegria a alegria de poder conversar, de dizer alguma coisa e ouvir uma resposta, de voltar a fazer uma pergunta e ouvir várias respostas, com um sorriso, contava aos presentes uma história maravilhosa, que eu não podia deixar de registar aqui ou num pedaço de papel.
...
- Não vá sem resposta. Dizia Joana a propósito de piropos, tentando olhar na minha direcção.

- Um destes dias, fui com a M. J. ao supermercado e na fila para pagar as compras, disse para a minha empregada chamada  M.J. com quem partilhava momentos  uma vez por semana. 
 - Ó menina, vá me buscar  um maço de algodão, que me faz falta. 
 A M.J., surpresa, vá se lá saber porquê, respondeu.
- Para que precisa a senhora de um maço inteiro de algodão? 
Joana, quase, quase indignada com a pergunta, repetiu a ordem de forma ainda mais determinada.
-... Vá, ora agora, porque preciso. 
Sem mais explicações encerrou o discurso directo, muito embora indignada com a audácia. A M.J.., dirigiu-se imediatamente ao corredor onde se encontravam os d.p.h. e tentava satisfazer o pedido o quanto antes, enquanto pensava na pergunta tola que acabara de dirigir a uma mulher que tem idade para comprar tudo o que lhe apetece, quando lhe apetece, sem precisar de dar qualquer satisfação a ninguém.

A indignação ainda não lhe tinha passado, completamente. Joana, aproveitou o momento para desabafar com a empregada da caixa, que pacientemente, esperava a vinda da M.J.., mais ligeira, mais leve, porque as histórias de vida que tinha, ainda não lhe pesavam nada. M.J. era uma mulher ainda nova e a dever ainda muito à vida.

- Ora agora, não querem lá ver, que eu com a idade que tenho, não posso precisar de um maço inteiro de algodão?
Com esta pergunta em forma de desabafo a indignação tinha passado e a explicação que não tinha dado à M.J., dava-a agora, gratuitamente, à empregada da caixa, que concordava consigo, abanando a cabeça.
Com um sorriso tímido dizia: 
- Sabe, que apesar da idade que tenho e de ser viúva,  eu ainda uso sutiã e gosto sempre, depois de fazer a minha higiene matinal e vestir o sutiã, de colocar um pouco de algodão aqui por baixo,  para não me ferir.
Joana confessava a sua intimidade.  A empregada da caixa compreendia a situação numa expressão facial sentida,  enquanto acrescentava que a sua avó, mais nova, já não usava sutiã há alguns anos.

Entretanto, a M.J.. chegava junto de si.  Joana virou-se um pouco para trás, para confirmar  se ela tinha feito o recado em condições e, acabava de constatar que atrás de si, estava um senhor de uns 70 anos de idade, com as compras na mão, para pagar.

Virou- à pressa na direcção da empregada da caixa e desejou que ele não estivesse ali desde o início,  a ouvir a confissão que acabara de fazer. ...Não deu importância, preferiu acreditar ter estado sozinha o tempo todo com a empregada da caixa a quando do desabafo, ...de qualquer modo, a idade,  já não a deixava corar.
Reparou pelo meio do troco, que o homem tinha desaparecido. Se calhar esqueceu-se de comprar qualquer coisa, pensou.
Já pronta para sair, devagar, com o peso das histórias de vida e algumas compras,  que as outras dividira com a M.J, o homem apareceu à sua frente surpreendendo-a,  e estendendo a mão disse:
- Posso oferecer-lhe, este pequeno presente?
Não estava embrulhado, a situação não lhe dera tempo. À sua frente, tinha uma caixa bonita com a fotografia de uns bombons que nos saltavam para a boca e para os olhos. Joana, aceitou, agradecendo a gentileza.
Continuou o seu caminho acompanhada da M.J., que nunca disse uma palavra. Apoiada de um lado pelo antebraço da M.J. e, do outro, pelo saco das compras, continuaram na direcção do carro.

Joana, percebia agora tudo. Aquele homem, ouvira a história toda do princípio ao fim, sem fazer qualquer ruído para não a assustar.

Depois de colocar os sacos no porta-bagagens, sentou-se, à pendura, ao lado da M.J. e depois de desfazerem a curva, olhou na direcção da sua janela. Do outro lado do vidro fechado, imóvel a olhar para si, permanecia um homem gentil de 70 e tal anos, agora que o via melhor, apesar de ver mal ao longe, que lhe dizia Adeus, acenando feliz para ela. 
Joana, sorrira à vontade, acenando de volta, trocando com a M.J. risos envergonhados, lisonjeados e divertidos...,  porque alguém reparara nela com outros olhos, com a idade que tinha.

Enternecíamos nós, a cada palavra da história que acabava de contar, sorrindo a cada descrição, a cada emoção, fazendo perguntas e mais perguntas, na expectativa de um futuro ou uma história de amor. Aquele homem, procurava companhia, não queria estar só, rematava Joana.

Depois de uma pausa, que nos dizia que a história terminara, dizia com um laivo de tristeza  e de resignação, mas, de maneira, a não deixar ninguém com problemas de consciência, já bastava os que cada um tinha e que faziam parte das suas próprias vidas.
- Eu só falo (com alguém) à terça-feira, que é quando lá vai a M.J. fazer-me a limpeza a casa. Depois estou, 4ª,5ª,6ª, sábado, domingo e 2ª sem falar de novo com ninguém.

Não conseguia ver os seus amigos, senti-los de perto, sentir-lhes o calor, nunca lhe ofereciam bombons.

Joana era uma mulher livre, eles estavam todos presos. A Catarina, o Peter Pan, o Malato, o Mantorras, a Amália, que nunca lhe respondiam, talvez porque estavam presos. ... e, também, não lhe faziam perguntas....só falavam e cantavam o que lhes apetecia, como se ela não existisse...

Os bombons foram oferecidos à netinha mais nova que tem.O senhor de 70 e tal anos, continua a ir ao mesmo sítio fazer compras, porque a M.J.. já tem trazido a notícia para casa à 3ªf, quando vai limpar... Joana, continua dando apenas atenção às coisas fúteis, porque já não está para se ralar. Faz a sua higiene diária e compra maços de algodão...