Soprava um vento norte sem mágoa de ninguém, ao mesmo tempo que a neve caia fora e dentro de mim... Através da vidraça, onde permanecia de manhã à noite, conseguia ver a minha alma frígida, mate, que outrora se tinha perdido do meu corpo,... a rondar a minha casa, neste instante. Esbocei um sorriso a sério, após inumeráveis anos...
Tudo começou, quando um certo dia a minha alma quis vaguear pelo mundo. E, sem qualquer satisfação demitiu-se, deixando-me só... Eu, tinha acabado de completar trinta anos...eu, e ela... dormia tranquilamente na minha cama sem desconfiar de nada... eu, ... Fruiu o meu estado profundo, sem sonhos...e, saiu. Ouvi a porta bater, julguei ser o vento...
Na manhã seguinte, quando acordei senti-me diferente, não sabia explicar, sentia-me profundamente triste, vazia, mutilada, decepada, magoada, ofendida,...sem perceber porquê. Notei alguns minutos depois, quando me olhei no espelho, que não me via, não me sentia...Tudo eram interrogações para aquele estado do avesso que havia encontrado, naquela manhã branca que sibilava... tudo, perdera o esplendor.
A vida lá fora e cá dentro não tinha sentido, ordenança, sequência, inferência, desígnio, desafio, força anímica... Os pássaros não eram mais os mesmos..., o mar nunca mais se ouviu..., as árvores deixaram de dar frutos..., as pessoas deixaram de ser interessantes..., os livros perderam as histórias..., as fábulas perderam os animais e as lições de vida..., a vida perdeu-se nas mortes apelantes..., o meu coração desistiu de sentir..., o sol escondeu-se..., o arco-íris perdeu as cores..., os peixes cessaram de nadar..., apenas..., às vezes..., as crianças conseguiam arrancar de mim um esgueiro e afectado sorriso...
No início, julguei-a. Numa cólera forte que não imaginei existir dentro de mim,... transformada em tempestade, trovejei sobre ela raios e trovões, chuva forte, granizo...Ofendi-a, chamei-lhe nomes… ingrata, desprendida, falsa, traiçoeira ... não compreendia porque me abandonara, …ninguém gosta de ser abandonado, e eu não sou diferente de ninguém,...Tínhamos brincado juntas, traquinices de criança, interrogações e loucuras de adolescente partilhadas...boas lembranças. Não entendia, porque me abandonara, como fora capaz...Fê-lo, sem proferir uma palavra ou deixar um papel escrito...
Com o passar do tempo madurei e ordenei os pensamentos, ... entendi que fora em busca da sua própria liberdade, da felicidade dos Homens, do calor...de um bocadinho de muito calor...onde se sentisse albergada, acesa.
Sabia, que as almas para viverem em plena luz, precisavam de calor. Apesar, de a amar profundamente, o corpo onde permanecera asilada em anos perdidos, fazia-a sentir-se desconfortável, fria, carente, ...e, por isso partira em busca do calor desejado, que as alimenta. E, lembro agora, desmemoriada, que por muitas vezes a vi de mãos trémulas, sem reparar. Achei que as almas tremiam, todas as almas tremiam, porque eram assim.
Fazes-me falta, segredei algumas vezes para dentro de mim...fazes-me, tanta falta...Contudo, em vão. Quem se cruzou com ela por estes tempos, conta que atravessava vidas, de um lado para o outro, feliz, liberta, dormia num corpo qualquer de quem nem precisava saber o nome ou os hábitos. Na manhã seguinte partia, sem deixar rastro ou cauda de cometa...Aprendeu nesta viagem, como se aquece o corpo onde se elegeu viver. Pareceu-lhe inicialmente complicado, agora faz aquilo com uma perna às costas...
Assente na janela, mantinha-se o meu corpo, como naquela manhã sem fim, ...nunca teve outro lugar. Os olhos engastados lá fora, a cada estação... branca-neve, verde-nascer, cor-de-laranja-sol, ocre-folhas no chão, ano após ano...
E, lá estava ela, acaba de chegar do mundo...bateu.
Abri a porta, os meus olhos olharam os teus, abracei-te e a seguir derreti... o sangue, voltara a correr-me nas veias, agora quente, aqueceu o meu corpo todo, uma sensação que, por pouco quase esquecia...olhaste-me, dizendo:... trago comigo, um bocadinho de muito calor...Aconteceu o reencontro, contigo e comigo…Voltaram a ser felizes juntos, corpo e alma, para sempre quentes...
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