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domingo, 22 de maio de 2011

A solidão dos bombons...


Joana, completava uns cheios 83 anos,  por altura da troca de prendas, vindas de quem se gosta e outras, a quem se dá por educação; por altura da criação de quadros e fotografias fingidas de  famílias unidas;  por altura de fantasias, das histórias que nos contam em criança, e infundadas vocações, que só surgem nesta época nos espíritos mais sonhadores, sempre e sempre em redor de uma árvore enfeitada e colorida, que sem ter culpa de nada, nem de pena para cumprir, acaba decepada e a fingir  como a maior parte de todos, os que brincam de solidariedade, compaixão, fraternidade, amor pelo seu semelhante. 

Era uma mulher simples, lutadora, que a vida obrigou muitas vezes a crescer depressa e a ser forte. Quem a olhava, via apenas uma mulher franzina. Quem a conhecia, sabia que era muito maior do que o que víamos de facto.

Preenchia os seus dias com pequenas coisas. A sua vida dependia do Verão ou do Inverno para sair de casa.

Adorava, ver os momentos do Peter Pan entre as crianças e a Catarina, com quem esbanjava gargalhadas na sala, que eu ouvia no quarto. Sabia muitas coisas das vidas dos ilustres que decoram as revistas cor-de-rosa, que leu até à pouco tempo, antes de o Glau, lhe ter  quase comido a vista esquerda. 

A sua vida, tinha tantas histórias, que as contava como se tivessem acontecido ontem, recordando com precisão todos os  pormenores.  Hoje, já só lhe apetecia dedicar-se a coisas fúteis e sem culpa. A pequenos prazeres que não exijam muito esforço. As suas pernas cansadas de viagens intermináveis, teimavam em andar devagarinho, ao contrário da cabeça que corria a mil à hora, entre o passado e o presente de forma muito límpida, ainda.

Adorava vibrar, com gritos e gestos, aos gloriosos golos de um clube que amou a vida toda. Vermelha, de raiva, às vezes, por uma táctica que não entendia, discutia sozinha com o écran da televisão, com os jogadores, com o árbitro, com o treinador, mas... ficava sempre alegre no final de cada jogo, ganhasse ou não o seu clube do coração. Havia dentro dela uma águia.

Tem um pássaro chamado Mantorras na gaiola, com quem gosta de falar, mas está preso. É a sua companhia diária. Ele, o Malato que está preso dentro do televisor, a Amália que está presa dentro do rádio, e uma ou outra amiga que foram condenadas há uns anos a viver dentro do telefone tal como a maioria dos seus familiares mais distantes ou mais próximos. De vez em quando, vê alguém, que passa lá por casa uns minutos, para que não se esqueça da silhueta dos seres humanos, mas mal dá para começar a falar do tempo, quanto mais contar histórias.

Joana, teve 5 filhos, tem 6 netos e um destes dias, em que partilhou com alegria a alegria de poder conversar, de dizer alguma coisa e ouvir uma resposta, de voltar a fazer uma pergunta e ouvir várias respostas, com um sorriso, contava aos presentes uma história maravilhosa, que eu não podia deixar de registar aqui ou num pedaço de papel.
...
- Não vá sem resposta. Dizia Joana a propósito de piropos, tentando olhar na minha direcção.

- Um destes dias, fui com a M. J. ao supermercado e na fila para pagar as compras, disse para a minha empregada chamada  M.J. com quem partilhava momentos  uma vez por semana. 
 - Ó menina, vá me buscar  um maço de algodão, que me faz falta. 
 A M.J., surpresa, vá se lá saber porquê, respondeu.
- Para que precisa a senhora de um maço inteiro de algodão? 
Joana, quase, quase indignada com a pergunta, repetiu a ordem de forma ainda mais determinada.
-... Vá, ora agora, porque preciso. 
Sem mais explicações encerrou o discurso directo, muito embora indignada com a audácia. A M.J.., dirigiu-se imediatamente ao corredor onde se encontravam os d.p.h. e tentava satisfazer o pedido o quanto antes, enquanto pensava na pergunta tola que acabara de dirigir a uma mulher que tem idade para comprar tudo o que lhe apetece, quando lhe apetece, sem precisar de dar qualquer satisfação a ninguém.

A indignação ainda não lhe tinha passado, completamente. Joana, aproveitou o momento para desabafar com a empregada da caixa, que pacientemente, esperava a vinda da M.J.., mais ligeira, mais leve, porque as histórias de vida que tinha, ainda não lhe pesavam nada. M.J. era uma mulher ainda nova e a dever ainda muito à vida.

- Ora agora, não querem lá ver, que eu com a idade que tenho, não posso precisar de um maço inteiro de algodão?
Com esta pergunta em forma de desabafo a indignação tinha passado e a explicação que não tinha dado à M.J., dava-a agora, gratuitamente, à empregada da caixa, que concordava consigo, abanando a cabeça.
Com um sorriso tímido dizia: 
- Sabe, que apesar da idade que tenho e de ser viúva,  eu ainda uso sutiã e gosto sempre, depois de fazer a minha higiene matinal e vestir o sutiã, de colocar um pouco de algodão aqui por baixo,  para não me ferir.
Joana confessava a sua intimidade.  A empregada da caixa compreendia a situação numa expressão facial sentida,  enquanto acrescentava que a sua avó, mais nova, já não usava sutiã há alguns anos.

Entretanto, a M.J.. chegava junto de si.  Joana virou-se um pouco para trás, para confirmar  se ela tinha feito o recado em condições e, acabava de constatar que atrás de si, estava um senhor de uns 70 anos de idade, com as compras na mão, para pagar.

Virou- à pressa na direcção da empregada da caixa e desejou que ele não estivesse ali desde o início,  a ouvir a confissão que acabara de fazer. ...Não deu importância, preferiu acreditar ter estado sozinha o tempo todo com a empregada da caixa a quando do desabafo, ...de qualquer modo, a idade,  já não a deixava corar.
Reparou pelo meio do troco, que o homem tinha desaparecido. Se calhar esqueceu-se de comprar qualquer coisa, pensou.
Já pronta para sair, devagar, com o peso das histórias de vida e algumas compras,  que as outras dividira com a M.J, o homem apareceu à sua frente surpreendendo-a,  e estendendo a mão disse:
- Posso oferecer-lhe, este pequeno presente?
Não estava embrulhado, a situação não lhe dera tempo. À sua frente, tinha uma caixa bonita com a fotografia de uns bombons que nos saltavam para a boca e para os olhos. Joana, aceitou, agradecendo a gentileza.
Continuou o seu caminho acompanhada da M.J., que nunca disse uma palavra. Apoiada de um lado pelo antebraço da M.J. e, do outro, pelo saco das compras, continuaram na direcção do carro.

Joana, percebia agora tudo. Aquele homem, ouvira a história toda do princípio ao fim, sem fazer qualquer ruído para não a assustar.

Depois de colocar os sacos no porta-bagagens, sentou-se, à pendura, ao lado da M.J. e depois de desfazerem a curva, olhou na direcção da sua janela. Do outro lado do vidro fechado, imóvel a olhar para si, permanecia um homem gentil de 70 e tal anos, agora que o via melhor, apesar de ver mal ao longe, que lhe dizia Adeus, acenando feliz para ela. 
Joana, sorrira à vontade, acenando de volta, trocando com a M.J. risos envergonhados, lisonjeados e divertidos...,  porque alguém reparara nela com outros olhos, com a idade que tinha.

Enternecíamos nós, a cada palavra da história que acabava de contar, sorrindo a cada descrição, a cada emoção, fazendo perguntas e mais perguntas, na expectativa de um futuro ou uma história de amor. Aquele homem, procurava companhia, não queria estar só, rematava Joana.

Depois de uma pausa, que nos dizia que a história terminara, dizia com um laivo de tristeza  e de resignação, mas, de maneira, a não deixar ninguém com problemas de consciência, já bastava os que cada um tinha e que faziam parte das suas próprias vidas.
- Eu só falo (com alguém) à terça-feira, que é quando lá vai a M.J. fazer-me a limpeza a casa. Depois estou, 4ª,5ª,6ª, sábado, domingo e 2ª sem falar de novo com ninguém.

Não conseguia ver os seus amigos, senti-los de perto, sentir-lhes o calor, nunca lhe ofereciam bombons.

Joana era uma mulher livre, eles estavam todos presos. A Catarina, o Peter Pan, o Malato, o Mantorras, a Amália, que nunca lhe respondiam, talvez porque estavam presos. ... e, também, não lhe faziam perguntas....só falavam e cantavam o que lhes apetecia, como se ela não existisse...

Os bombons foram oferecidos à netinha mais nova que tem.O senhor de 70 e tal anos, continua a ir ao mesmo sítio fazer compras, porque a M.J.. já tem trazido a notícia para casa à 3ªf, quando vai limpar... Joana, continua dando apenas atenção às coisas fúteis, porque já não está para se ralar. Faz a sua higiene diária e compra maços de algodão...


2 comentários:

  1. Ana,estive nesse sítio onde se compra maços de algodão,transportado nas tua palavras,em cada virgula,ponto de exclamação...tal a autentacidade que deste ao texto...estás aí!

    BjS

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  2. Um conto real onde todas as Joanas são libertas e os demais se enclausuram...
    Eu sempre gosto de vir por aqui, Ana, sempre...
    Um grande abraço

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alfa diz: