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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A liberdade de ter o céu como tecto e a terra como chão

O dia nascia, chovia intensamente, … e ao som da chuva, Jack perdia-se na trama urbana por onde à muito deambulava, numa cidade cheia de luz. Vivia no coração daquela que o acolhera, na sua nova vida.


Habituado ao Sol quente de Verão que sentia na pele, cada vez mais escaldante e por mais meses com o passar dos anos; prognosticado por cientistas e ambientalistas que volta e meia eram entrevistados sobre a matéria; …Jack ia tomando conhecimento de como se encontrava o Planeta, o Mundo, o Continente, o País, a sua nova cidade, sempre que parava nas montras das lojas de electrodomésticos, à hora do telejornal, pelos lcd's expostos e arrumados por tamanhos para venda ao público.

Cada dia a mais, que aquela estação do ano conquistava à anterior, ele sonhava com o tempo fresco. A sua pele já ressequida e queimada em excesso, começava agora a fender, ora as mãos, ora a cara e as restantes partes do corpo que tinha deixado desabrigado, irresponsavelmente, horas intermináveis sem qualquer protecção solar, durante o último Verão.

Nos últimos dias vinha assistindo em primeira mão, à frente fria que se aproximava devagar e que com ela trazia temperaturas mais baixas, apesar de ainda altas para a época - recorda mais uma vez as palavras dos cientistas e meteorologistas de serviço, de novo nos lcd’s; …vento e nuvens negras, densas - constatava com os seus próprios olhos; … sentia-lhe o cheiro e via que cada pedaço de terra, nos canteiros, nos vasos à porta dos habituais moradores ou nos jardins da cidade, aguardavam ansiosamente as primeiras gotas de chuva, tal como ele.


Tinha acabado de acordar e arremessar de cima de si o papelão húmido amontoado em três camadas,  que enquanto dormia, não deixou de “fazer o seu papel” aos transeuntes noctívagos - publicidade aos lcd’s da LG, da Soni e da Samsung, para além de lhe servirem de cobertor, quando o céu num repente desabou.

Só teve tempo para se abrigar no vão de entrada do prédio ao lado, com três degraus retraídos e puxar para si todos os seus haveres, que eram poucos. Um pequeno saco de plástico de uma grande superfície, com alguma roupa gasta pelas histórias dos corpos que tinham vestido, um resto de pão com torresmos que a vizinha do nº21,1º - Dtº. Da Rua Nova do Almada lhe oferecia todas as semanas e que ele trincava uma ou duas vezes, para se animar e  se sentir “rico”, dependia do número de vezes que se sentisse só, …e um amuleto de criança, dado pelo avô paterno. - Sobre o amuleto, poderemos voltar mais tarde ao assunto se o Jack fizer questão, porque “dava pano” para outra história tão grande ou maior que a que vos vou contar.


Imaginou ser o Dilúvio.

Apesar de nunca ter conversado com o “tal” Noé, a quem foi apresentado à alguns anos atrás pela catequista da paróquia onde cresceu e viveu em pequeno, ainda chegou a ver, o retrato/desenho do próprio e da sua Arca. Naquela idade inocente, ficou maravilhado com tanta compaixão e generosidade. A catequista também lhe ensinou, que tinha sido Noé que nos tinha defendido do pior presságio, depois de fazer um pacto com Deus. Deus tinha “mandado” Noé, o homem mais justo ao cima da Terra, construir uma grande Arca, e assim salvava a sua família e um casal de animais de cada espécie, uma vez que tinha decidido destruir o mundo por causa da perversidade humana.

Assim, conseguiria assegurar a diversidade e o desenvolvimento do planeta na dimensão que o conhecemos hoje, pensara Noé… Naturalmente, com a ajuda da aptidão natural e do instinto inato que caracteriza todos os seres vivos, para se multiplicarem com extrema facilidade.

No dia do pretenso dilúvio – escrito, por mim, propositadamente com letra pequena, porque ainda não chegou o dia do “Juízo Final” - Jack, depois de lhe passar o efeito surpresa da intempérie que o cobria da cabeça aos pés, resolveu colocar o saco à tiracolo e rua a baixo desceu o Chiado, feliz e contente. A chuva molhava-o com prazer e ele deixava. Sentia-se feliz, apesar de todo molhado. E, ao contrário dos soldados com se cruzava todos os dias azuis e cinzentos, de onde ele se destacava por andar à paisana, não lhe deixarem espaço para poder passear recebendo encontrões e empurrões constantes, sem a companhia dos devidos pedidos de desculpa, hoje todos se abrigavam nos beirais à esquerda e à direita. Estava espantado, nunca se tinha apercebido que tinham medo da chuva, - medrosos. Nem os que tinham chapéu de chuva se aventuravam, por não se sentirem protegidos.

Chovia com tanta força e em tão grande quantidade que as ruas tinham-se transformado em grandes riachos de pequeno caudal, o bastante para os soldados perderem a compostura e a postura, altiva e arrogante que todos os dias logo de manhã teimavam em trazer para as ruas da cidade.

Quando o Sol raiava noutra época do ano, aquelas ruas não eram suas, mas sim de toda a gente. Sentia-se muitas vezes abandonado no meio da multidão, que todos os dias chegavam cedo à cidade para desaparecerem ao final do dia, e fugirem para o conforto ou desconforto das colmeias de betão. Estava habituado a vê-los durante todo o ano, com excepção de poucos dias, sempre hirtos, luzidios e todos vestidos de igual... fato completo cinzento ou azul-escuro, camisa branca ou azul clara com ou sem riscas ao alto e gravata a condizer. - Quero dizer, nem sempre...

Pareciam verdadeiros exércitos, a entrar na cidade logo pela manhã e tomarem as suas posições em postos estratégicos, para perto da hora de jantar voltar às suas viaturas e desaparecerem.

Jack, também já tinha feito parte um dia, de um exército com estas características; também ele havia tido um fato de uma das duas cores permitidas pelo regulamento, com gravata e tudo. Mas, tinha sido há tanto tempo, que já se tinha esquecido de todas as regras e requisitos para o integrar. Na memória guardava apenas… que não tinha saudades.

Recorda, que quando O integrou pouco tempo depois de se tornar adulto, não fazia ideia, que aquela não era de todo a forma ou a fórmula para atingir a felicidade. No entanto, quando se alistou levado pelos amigos e companheiros, que chegada a idade adulta procuravam a sua independência financeira, Jack já namorava e desejava um dia constituir família. Digamos, que cada etapa do desenvolvimento humano, desde que parte integrante deste ou de outro qualquer exército do género, pressupunha quase sempre por esta ordem, tarefas como o sedentarismo, a fixação num lugar, a aquisição de património imobiliário, a união, a pro-criação, eventualmente a pro-criação de novo, eventualmente o aumento do património de novo... com o elemento competição sempre presente.

Sentia-se a cada dia mais prisioneiro, refém até, de uma sociedade controladora que bitolava tudo e onde meia dúzia de patentes militares deixavam pouco espaço para a imaginação, para o individualismo, para a diferença, para o improviso e para a espontaneidade. Jack começou a sentir-se esmagado, triste, a deixar de sonhar e procurou uma alternativa…

4 comentários:

  1. Jack?..Uhm…é-me familiar, ou não teremos todos nós um Jack por perto?...História bem narrada, escalpelizada ao pormenor, escrita e sentida de forma a que nos leva embalados e embrenhados nas deambulações da personagem pela cidade, como se fossemos nós próprios…Aguardemos pois, pelo próximo capitulo!

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  2. sim, esse conheces.Este é outro.

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  3. Ana Paula Barros05/12/2009, 23:04:00

    Normalmente ando sempre aqui a vaguiar sempre silenciosamente.
    Mas hoje apeteceu-me,comentar.
    Coitado do teu Jack"cheira-me a pistoleiro".
    Uma coisa é certinha e direitanha, todoa nós temos o céu como tecto e. a terra como chão.
    E,óbvio minha querida,que a LIBERDADE e a FELICIDADE só depende de como nós a sabemos usar.

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  4. alô Paula B. fico contente em saber que também me vieste visitar no meu blogue tão recente. Obrigada. Um beijo para todos.De vez em quando falo com o Victor por isso sei que estão todos bem.

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alfa diz: