Saí sem veleidade de passear...
Levava comigo alguns pertences, uma garrafa de água, uma maçã e um livro, o que deixava adivinhar que o passeio saberia ser prolongado - nem eu sabia ao certo, mas gostava de me precatar em terra sempre que ia para o mar.
Submeti o meu corpo capitaneado pelos meus pés, a adoptar a direcção Norte. Apresentavam-se-me duas hipóteses: ou, seguia ao lado da estrada não concebendo um passeio com tormenta permanente, de um vrummm vrumm trauteado a cada carro que passava, ou, descia à praia e seguia o recorte da costa ao som do mar e de uma maré vazia.
Preferi a segunda.
De cima, no miradouro, alcancei que a praia estava nua. O mar tinha levado muita da areia que deixei lá no último Verão, e viam-se-lhe os ossos acentuados. Todas as rochas que a constituíam eram visíveis. Desci.
As anfitriãs eram as gaivotas, já adultas, que davam as boas vindas a quem por ali se aventurasse. Ao fundo das escadas da Praia do Matadouro, eram as fragas que se estendiam no caminho. O mar chão, balouçava baixinho, para cá e para lá enquanto eu ia fazendo comparações entre aquele lugar onde tinha estado deitada apanhar sol em dias de calor, confortada pela areia, e o monte de geios que aquele mesmo lugar apresentava agora, hoje, em plena maré frívola. Percorri a praia cimentando todas as analogias que a minha memória conquistava recordar, das reminiscências que me restavam da última estação.
As gaivotas quedavam-se e encontrava-me agora com os maçaricos do mar, que debicavam ouriços arrastados à força e deixados à vista pela inexistência da água; viam-se lapas pequenas, agarradas ás rochas como crianças em idade muito tenra, que temem os estranhos e nos virão a cara, rejeitando a medo, o desconhecido – Aliás, o que continuamos a fazer mesmo depois de adultos, com uma dificuldade acrescida, a de não termos a quem nos agarrar, o que torna tudo mais difícil -, momentos que nos postam à prova e que nos conferem, igualmente duas opções: ou o encaramos e o vencemos, tornando-nos mais fortes; ou, o medo toma conta de nós para o resto da vida, de quem seremos eternamente reféns.
Perdida em todas estas meditações que me furtavam a raciocínios infindáveis, seguia o meu velejo praia adentro. O Sol, que já ia alto aquecia-me agora o corpo e sublimava a temperatura de tal forma, que me aliciava ao ponto de tirar o blusão roxo de penas. Coloquei-o à cinta, onde similarmente gostava de estar.
Cheguei ao final daquela praia e só tinha uma desembocada, alar-me de novo, como tantas outras vezes e encontrar-me com a civilização. Era obrigada abandonar o mar, sozinho, por instantes. Foi o que fiz, sem ânimo. Os ritmos seguintes seriam feitos ao som dos automóveis que transcorriam.
Poucos minutos e metros depois, feliz por ir ao seu encontro de novo, entrei no caminho de terra e pó amarelo que me levava à praia seguinte. Deixava para trás momentos de deleite, singulares, que me ofertavam a tranquilidade bastante e o prazer costumeiro da proximidade com a natureza.
Cheguei à praia seguinte, praia da Empa. A vista era sumptuosa, como, por tantas vezes, já havia atestado. Parei agraciar, olhava para um e outro lado e só via mar à minha frente. Um mar calmo, doce, absolutamente sedutor. A cor e o cheiro que tinha, subjugava qualquer outro desejo ou sentido que pudesse imaginar.
Desci as escadas, eram de madeira. Já ali tinha estado outras vezes, mas nunca porfiava para além daqueles degraus de madeira.
Hoje, era o dia em que granjeava uma contiguidade maior e a maré rasa franqueava a aventura. Sempre que tinha ensaiado descer a esta praia, coincidia com marés cheias e rebeldias, com deferência, que se sabiam fazer respeitar. Por isso, nunca tinha conseguido ver para a minha direita, o que existia para além de um cachopo impune e muito rocado à mistura.
Havia roupas espalhadas nas rochas, certamente de surfistas aventureiros, o que, com muito esforço alcancei burilar ao longe. De tão longe, eram tão exíguos.
Escalei por cima de rochas a cuidado e rumei de novo a Norte. O livro, de quem já me tinha esquecido, mas que tinha resolvido levar hoje a passear, resolveu fazer-se notar e atirar-se para o chão.
- Bolas. ...disse...e, pensei...
Felizmente, que não resolveu mergulhar em águas fundas; pobres letras e palavras de Gonçalo se tivessem apresentado outras vontades, morreriam afogadas numa praia quase virgem que só é possível romper quando as águas nos permitem. Não queria o destino que aquela história ou histórias que transportava comigo, que todos aqueles personagens inventados por outro alguém, mergulhassem para além-mundo dos livros, sem que eu o pudesse ler.
Recuperei-o, por entre o musgo verde-escuro que cobria de forma rala aquele rochedo ainda jovem, carregado de covinhas de encantar, cheias de água salgada onde existia vida, noutras formas. Tinha a certeza.
Prossegui na mesma direcção, determinada, depois de ter derrotado e dobrado o rochedo maior atrás de mim. Olhei em frente e vi uma praia pequenina de areia dourada, que não tinha qualquer pegada humana.
Estarreci, enternecida...Era a primeira vez, que a via de facto...
Pisei a areia e cuidei, que esta teria sido a mesma sensação que teve, o primeiro astronauta quando pisou o solo lunar. Agigantei nos pensamentos, eu sei, mas não me importo com isso,... desfrutava integralmente do som do mar que tinha de volta aos meus ouvidos, da visão de uma praia completamente deserta, que era naquele momento só minha.
Que vontades esquivas, tomam conta de nós, de vez em quando. A minha alma estava feliz, era o que importava. Atravessei-a, até à outra ponta, ainda mais a Norte. Olhava para trás e via ao longe uns pontinhos pretos, que os meus olhos não conseguiam identificar com precisão, o que deviam ser os dois surfistas conquistando ondas dóceis.
Imaginei que pudesse estar na direcção do Velho Forte, porque não conseguia fitar nada senão uma encosta muito alta, com ar de Adamastor, como se fosse um gigante que estava ali para não deixar passar o mar. Dobrei aquela proeminência costeira e encontrei outra praia mais pequenina ainda, com ar envergonhado, igualmente sem acesso nenhum.
Não lhe conhecia o nome, mas era uma praia guardada pelo Velho Forte. Antes da sua existência, não era guardada por ninguém. Este, seria o seu velho e único amigo, que jazia em ruínas a seu lado, para o que desse e viesse. Ele estava decidido a tomar conta dela até ao seu fim. Talvez, fossem avô e neta, não cheguei a perguntar, imaginei apenas.
Por momentos pensei descer e alcançar Ribeira d’Ilhas, mas as forças, o cansaço e a sensação de que aquela costa era interminável retiravam-me a vontade de continuar. Estava saciada.
Voltei para trás, subindo e descendo pequenos rochedos, até me abalroar na areia de novo, da praia de areia dourada. Não havia pássaros por aqui, nem gaivotas, nem maçaricos. O Sol estava demasiado quente para Dezembro e obrigava-me a fazer uma pausa para descansar. Bebi as ultimas gotas de água, que restavam no fundo da garrafa que levara comigo. A paisagem e o silêncio eram ópio, pousei o que tinha em cima do casaco roxo e despi-me…O mar de um lado, a terra do outro…repousei..., flutuei...
…voltei à reminiscência quando já me encontrava sentada num banco de pedra, à sombra, longe daquela praia de sonho. Descalcei-me, e foi quando entrei em Jerusalém com a devida atenção. À minha frente tinha agora uma louca, Mylia, que estava doente, um médico, Theodor e Hannah, uma jovem prostituta, que me aguardavam carentes de atenção, cansados. Dediquei-me a eles durante uma hora.
Deixava-os mais tranquilos e recolhia agora a casa, cheia de ideias e uma enorme vontade de escrever, maior que a convicção que tinha quando o fazia de facto. Atropelavam-se as imagens, as palavras, as frases, os momentos, os pormenores,...
...Já em casa, pensei...Hoje, recortei a costa e passeei por praias desconhecidas.
Alfa Lindo texto adorei. Estive ausente mas agora estou de volta a partir de hoje volta tudo ao normal.
ResponderEliminarBeijos
Santa Cruz
MGomes, confesso que já me tinha interrogado, pelo seu desaparecimento, fiquei contente por ter voltado bjinhos alfa
ResponderEliminar…Por palavras se caminha à descoberta do desconhecido. Texto este, que nos transporta em sítios tais de forma tal, que companhia tiveste enquanto por lá andas-te!
ResponderEliminar…Do melhor que tenho lido por aqui!
Bj*
Gostei!
ResponderEliminarDas frases, dos momentos, dos pormenores e do seu todo!
Parabéns!
Bjs dos Alpes
Alfa!
ResponderEliminarViajei juntamente contigo, uma caminhada magnífica em lindas vistas descritas por ti.
Beijos!
Como é bom caminhar na praia. Comungar os sons e as sensações que a natureza proporciona. Seguramente a tua segunda escolha foi profícua em todos os aspectos. Deu lugar a este rico texto de pormenores que nos conduzem a viver o momento.
ResponderEliminarLevo daqui a boa sensação de ter tido o prazer de ler um excelente artigo.
Esse passeio foi saudável e inspirador.
Festas Felizes para ti e família, extensível aos teus leitores e amigos.
Kandandos
Vim para deixar um FELIZ NATAL e um grande ANO NOVO a ti e a todos aqueles que teu coração abriga.
ResponderEliminarBOAS FESTAS!!!!
Parabéns pelo blog e pelos textos... Tenho um blog chamado Folhetim Cultural gostaria que visita-se este é o endereço: informativofolhetimcultural.blogspot.com
ResponderEliminarVamos trocar conhecimentos...
Ass: Magno Oliveira
Folhetim Cultural
Um Feliz Natal!
ResponderEliminarBeijo
Bom dia Alfa
ResponderEliminarAmei a música, o texto - li as duas partes, o blog...
Texto real ou um miniconto? Em todo caso, delicioso!
Beijos!
Já estou lhe seguindo!